Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Uma avaria

Licínia Quitério

 

Uma avaria
por Licínia Quitério

 

– Uma avaria grande. Tem de ir um camião buscar uma peça. Previsões não dão.

Foi esse o dia em que falaram a dois, a três, a quantos iam chegando. Os que passavam falavam com quem se encostava às ombreiras. Do lado de fora da porta, como nunca se vira. As casas iam arrefecendo e felizmente cá fora havia sol. Melhor ficar por ali, num remanso forçado, a desatar as falas tão guardadas que nem se sabia que existiam. Quem havia de dizer que se foram descobrindo amigos comuns? O mundo é bem pequeno, já todos tinham ouvido dizer.

Claro que o Senhor Joaquim conhece a vizinha. Não, como ela supunha, por lhe dar o calçado a arranjar, por lhe conceder os bons dias, as boas tardes, a que ele responde sem levantar os olhos da obra. Conhece-a desde sempre, mais o pai, a mãe, o marido, alguns amigos. Foram, a bem dizer, colegas na mesma grande empresa já lá vai muito tempo. Agora porta com porta. Quem diria?

– E a luz que não vem. Isto está para durar. Mais vale fechar a loja por um instantinho que a freguesia também anda perdida.

E vão as duas, as três, tomar um café na outra rua, onde a avaria não fez estragos. Extravagâncias a que nunca se permitem, a não ser hoje, que esta arrelia não deixa fazer nada.

Já passava das cinco quando a luz apareceu. Houve uns gritinhos de alegria. Depois disseram:

– Bom, vamos andando que tenho tudo atrasado.

Talvez amanhã voltem a falar de coisas que nem sonhavam que sabiam.

Em casa, a velha senhora, depois de passada a hora de desacerto em que todos os gestos de autómato não produziram efeito, sentou-se. Pegou num livro, pegou noutro, mas não conseguia concentrar-se na leitura. Só mais tarde entendeu que na casa havia um silêncio desconhecido. Todos os aparelhos desligados, recordou a orquestra de ruídos, de zumbidos, de estalidos que fazia parte dos seus dias. Passou a tarde a escutar os passos, as vozes na rua, os miados dos gatos nos quintais das traseiras, a tosse do vizinho do lado. A inoperância das máquinas deu-lhe a percepção de mais vida. Soube-lhe bem a imobilidade. Nem deu pelo frio da casa. Pensou, como sempre, nos seus mortos, mas não ficou com os olhos húmidos. Achou que talvez estivesse mais próxima do silêncio deles.

Fazia já escuro quando a luz voltou. Estremeceu, levantou-se e não parou até acertar todos os autómatos. Há muito que não tinha um dia como este. Avariado. Diferente.

Licínia Quitério


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019) – dois contos – Disco Rígido e Disco Rígido – Volume II – três romances – Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem e A Tribo – participações em antologias – Cintilações da Sombra 2; Cintilações da Sombra 3; Clepsydra – e uma tradução (do castelhano) O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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